terça-feira, 26 de abril de 2011

[bravura]


Levi Nauter




Filha,

Há um filme bem legal chamado Um ato de coragem no qual um pai faz tudo o que parece ser possível para salvar a vida do filho. Nem tudo é elogiável, mas pela vida de um filho elogio é o que menos importa. A vida sempre vale mais.
Hoje (23-4-11) eu fiz um ato de coragem, um ato de bravura.
Não foi nada de mais, alguns poderão dizer. Para mim foi. A bravura, neste caso, só é bravura porque comparada comigo mesmo. Eu explico melhor.
Eu não sei bem por que, Maria, mas quem me conhece bem sabe do meu medo de altura. Não sei de onde, quando nem as razões disso, no entanto, é mais forte do que eu. Quando eu e a mamãe morávamos noutra casa, menor e de madeira, o medo já se manifestava. Perdi as contas de quantas vezes ‘fiz força’ para subir na escada e ajudar a mamãe limpar as paredes. Lá pelo quarto degrau minhas pernas, incontrolavelmente, começavam a tremer. Já na nossa atual casa, o medo me assola mais seguidamente pois tenho que limpar paredes de alvenaria bem mais altas, e as calhas no telhado. É terrível ter de subir.
Minha coragem teve a ver contigo. Sim, o teu olhar e as tuas palavras (de uma menininha que nem sei se tem consciência do que está dizendo aos dois anos) me fizeram ser maior que o medo.
Um dia antes chovera torrencialmente pela segunda vez onde a gente mora. Fora tanta chuva que a calha não deu conta de deixar a água escorrer. Para agravar a situação, os ipês amarelos da nossa casa ‘largaram’ folhas que se acumularam e entupiram as tais calhas. Resultado? A água transbordou e começou a cair na cozinha de casa. Ficamos assustados, mas nada poderíamos fazer devido à chuva. No sábado é que poderia ser feito algo – alguém deveria subir até o telhado e fazer a limpeza. Quem subiria num pé direito com sete metros? Ou eu criava coragem ou pagava alguém. Coloquei a escada no alçapão e fui subindo. Tu, Flor, acompanhava de perto. Quando eu estava lá em cima te olhei com um misto de medo, apreensão e o pensamento de que eu precisava fazer o que estava fazendo a fim de evitar gastos. Ao olhar pra ti, vi uma carinha tão lindinha. Mas a frase que disseste foi fatal:
- papai, ‘tinhâmu’. (papai, te amo!)
Como me senti tocado com essa frase. Um filminho – em segundos – passou na minha mente: um serzinho tão picorrucho, com quem eu falava durante a gravidez da mamãe e de quem muita curiosidade eu tinha de ver o rostinho, agora estava ali dizendo que me amava. As tuas palavras transformaram-se em “vai, pai, você consegue”, “eu acredito em ti”. Foi com essa ideia que tive forças suficiente para subir pelo telhado e limpas as duas calhas dos fundos da nossa casa. As tuas palavras me deram a coragem e a força necessárias para eu não temer a altura.
Fico pensando que eu também quero – sempre que me for possível – transmitir-te palavras que deem força, palavras que te tragam mais vida, mais alegria, mais paz interior. Parece-me que a função de pai também é essa.
Te amo!!!



 


NOTA
A foto de uma parte da nossa casa foi tirada pela mamãe, num momento Casa Claudia.

[medinho]


Levi Nauter



Sabe, filha,
eu ainda guardo na lembrança algumas coisas do meu tempo de criança. É, papai também foi criança e também tinha medo do escuro. Parecia que havia fantasmas na escuridão da noite. Então eu corria até a porta do quarto e chamava a mãe ou o pai (teu avô, Josué). Acho que eu incomodava. Às vezes eu ouvia um “que saco!” antes da porta abrir. Mesmo assim ficar perto do pai e da mãe ainda parecia mais seguro.
Agora chegou a tu vez. Já perdemos as contas (eu e a mamãe) das vezes em que vens ao nosso quarto, com o travesseiro nos braços, pedindo um cantinho para deitar. Não sei o que tu enxergas à noite. Sei que acordas dizendo “mainhê” ou “paiê” e, em seguida, ouvimos teus pezinhos chegando perto de nós. Não sei a mamãe, mas eu acho uma das coisas mais belas do mundo poder dar aconchego pra ti.
Tu és meu maior presente, o maior tesouro dado por Deus e desejado por mim e pela mamãe. Provavelmente por isso é que nos sentimos privilegiados por podermos te dar a sensação de segurança e um pouco mais de tranquilidade ao teu sono.
Que os teus sonos e sonhos sejam sempre tranquilos assim como a vida que desejamos pra ti.


Te amamos muito.
NOTA
Texto postado ao som do excelente disco do Ivan Lins com The Metropole Orchestra. Neste exato momento, ouço Arlequim desconhecido.


domingo, 17 de abril de 2011

[uma poesia para ti: os pássaros]

Levi Nauter





Querida filha,



A primeira vez que ouvi da tua boca a palavra pataínho eu fiquei muito, mas muito feliz. Estávamos na nossa casa, nos fundos do pátio. Observávamos as árvores, o gramado. Aí, de repente, um passarinho pousou no muro, desceu até a grama atrás de comida. Ficou um bom tempo buscando alimento. Quando tu viste o bichinho começaste a falar: “papai, alá o pataínho”.
A partir desse dia, noto que tu ficas observando as árvores, o gramado e tudo aquilo donde pode sair algo diferente para os teus olhinhos, para a tua sensibilidade. E isso me deixa cheio de orgulho. Outro dia estávamos no carro, numa BR, e você olhando a movimentação. Em meio a uma plantação de arroz, distante da faixa na qual viajávamos, avistaste um pataínho e notaste uma luz que – distante – sinalizava uma antena, ou de rádio ou de celular. Nada mau a uma menina com dois aninhos.
Agora, meses depois, li uma poesia cujos trechos remeteram a você. Continue assim, diferente, observadora, admiravelmente maravilhosa.

Andar à toa é coisa de ave.
Meu avô andava à toa.
Não prestava para quase nunca.
Mas sabia o nome dos ventos
E todos os assobios para chamar passarinhos.
(...)
Meu avô era tomado por leso porque de manhã dava
bom-dia aos sapos, ao sol, às águas.
Só tinha receio de amanhecer normal.
Penso que ele era provedor de poesia como as aves
e os lírios do campo.
Manoel de Barros[1]

Sabe, filha, há um monte de palavras que, saindo da tua boca, me soam como as mais belas poesias.
“Papai” e “Eviiiii”, são exemplos.
Eu te amo.





[1] A poesia citada chama-se “o provedor” e é parte do livro de poesias selecionadas denominado A poesia dos bichos, de Thiago de Mello, Manoel de Barros e Carlos Drummond de Andrade.  A obra foi publicada em 2002 pela Bertrand Brasil. 

 Desenho de Jillian Phillips para o livro PEQUENOS AJUDANTES-Ciranda Cultural- 2010

segunda-feira, 11 de abril de 2011

[pequeno dicionário da flor 2]

Levi Nauter








Eu quero ver você aprender.

Galinha Pintadinha






Querida filha,

Este será meu último post tratando especificamente das tuas aprendizagens sobre as palavras. Sim, tu estas acima das palavras e por isso usei o sobre.
Acontece que a tua interação com as palavras estrapola o meu tempo de escrita. Enquanto preparo um texto o teu ‘dicionário’ interno vai crescendo, crescendo cada vez mais. E eu não dou conta de sistematizar tudo. Ademais, os contextos nos quais as palavras surgem mereceriam também um pequeno comentário senão ficaria sem graça para um leitor diferente de nós (eu e a mamãe).
Abaixo, seguem os principais verbetes usados por ti.


PALAVRA
SIGNIFICADO
Sitá
Significa sentar para o lugar que está sendo apontado por ti.
pataínho
Foi uma emoção quando ouvimos pela primeira vez você apontar para as árvores e dizer passarinho.
Uáua/auáua
É apalavra mais ouvida quando estás com sede: água.
Chorro/sassorro
As duas palavras significam cachorro. Porém, a primeira você fala automaticamente; a segunda, quando eu ou a mamãe inventamos de querer te ensinar.
Passar
Você fala essa palavra quase sempre com a mãozinha erguida para mim ou para a mamãe, querendo passear.
Vem
É isso mesmo. Serve, basicamente, para nos mostrar aquilo que queres e que nós não entendemos.
Íta
Esse adjetivo tu usas para as bonecas com o mesmo fervor com que dizemos pra ti: linda.
Vô e vó
Sem palavras. Significa o que entendemos mesmo.
Lôlo
Designação de apenas um dos olhos. Olho
Lólo
Designação para os dois olhos, ou para óculos.
Tólo
Quando queres colo.
Bucê
Quando queres descer de algo mais alto que tu.
Taíu
Quando sinalizas que algo caiu.
Sassage
Uma das coisas mais linda de se ver. Tu ficas de bruço, ergue a camisetinha e pede massagem.
Fuva
Quando o dia chega com chuva.
Fávi
Quando queres abrir o carro ou a porta da nossa casa. Chave.
Ôpa
Para o que a gente gosta de te dar, roupa.
Bãlêlo
Uma das palavras mais ouvidas nesse teu caminho para deixar as fraldas: “xixi no banheiro”.
Passabenssa
A mais recente do dicionário. Acho que tem a ver com as homenagens que recebeste. Parabéns! Mas tu dizes cantando aquela musiquinha...


O verbo ACHAR causou-me espanto dia desses. Eu e a mamãe estávamos conversando contigo quando, de repente, notamos que tu fazias duas conjugações bem interessantes, o que pode ser muito pra uma menina de dois anos. Pediste o bico (a chupeta) e dissemos que não sabíamos onde ela poderia estar; deste uma procurada e voltaste dizendo em alto e bom som “achei bico”. Realmente tinhas achado. Noutro momento, eu encontrei um bico e tu disseste “achou bico”. Que conjugação perfeita.
Maria, é muito bom ter você perto da gente. Melhor ainda é notarmos que estamos fazendo o melhor que podemos para que teu desenvolvimento aconteça. A tua história está só começando e já estás rabiscando-a por todos os lugares que passas. Acho que terás bons motivos para escrevê-la, registrá-la, gravá-la tanto em ti como nos que te cercam. E eu farei tudo o que puder para que ela seja bem escrita.
Te amo muito.








NOTA
O “pequeno dicionário 1” foi postado em outubro de 2010. Para visualizá-lo http://florzinhadaminhavida.blogspot.com/2010/10/pequeno-dicionario-da-flor.html

Digitei o texto ao som do novo disco da Francesca Battistelli, Hundred More Years. Acho legal o som dela e acho que também vais gostar quando estiveres maiorzinha.
A foto, pra variar, foi tirada or mim - um pai bem bobo por ti.